Andanças com amigos


Retrato de um Homem Livre,
- 29 de outubro de 1991 -





DEPOIMENTOS SOBRE ANTONIO POSSIDONIO SAMPAIO,
EXTRAIDOS DO LIVRO “RETRATO DE UM HOMEM LIVRE”,
PUBLICADO EM OUTUBRO DE 1991






     “Num país onde a expectativa de vida não vai além de 60 anos, completá-los já é um fato que requer comemoração. Completá-los em pleno vigor de pai recente, escritor atuante, advogado combativo, militante permanente à frente de trincheiras culturais e onde quer que os direitos humanos estejam em jogo, é duplo motivo de comemoração. Juntando-se a isso 20 anos dedicados à literatura, sete livros publicados e um por sair, nesse mesmo país onde os dados mais recentes apontam para mais de 60 milhões de analfabetos e as tiragens das edições de livros de autor brasileiro não ultrapassem ridículos números, chega-se facilmente à conclusão que mais do que comemoração é regozijo, é celebração.
   Antonio, Possidonio ou Sampaio, ou simplesmente o amigo faz sessentanos e a homenagem só poderia vir através da palavra, a dos amigos (apenas alguns dos muitos que poderiam estar presentes) pois que de palavra tem sido construída a sua existência e de amigos idem.
   Comemoremos, portanto, a data e a perspectiva de celebrações futuras.”

Dalila e Valdecirio Teles Veras

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   “Primeiro eu acho importante dizer ao companheiro Possidonio que embora ele complete sessenta anos de idade, a cabeça dele e as ideias dele são as de um jovem de vinte anos. O Possidonio é daquelas pessoas que não ficam velhas, nem fisicamente e muito menos mentalmente. É um companheiro que está na frente da modernidade, sempre à frente da própria história. Eu conheço o Possidonio desde 1969 e tive no companheiro uma espécie de confidente.
   Eu quero dizer ao companheiro Possidonio uma coisa que possivelmente nunca tive a oportunidade de dizer. Você, companheiro Possidonio, não tem dimensão da contribuição que você tem para com o meu desenvolvimento sindical e político. Muitas vezes durante anos, você ajudou a decidir coisas importantes para o meu comportamento político, para os meus companheiros de diretoria, para a minha categoria. Você era daqueles companheiros que várias vezes, ao chegar em casa, à noite, conversando com a Marisa coisas difíceis do Sindicato, coisas que eu não conseguiria resolver, a gente discutia se não era o caso de te convidar para tomar uma cachaça, para discutir. E várias e várias vezes, possivelmente você nem soubesse, mas tomando as cachaças e conversando as coisas mais abstratas possíveis que a gente conversava, eu na verdade estava tentando obter de você saída para os meus problemas políticos, e os meus problemas sindicais. Eu acho que vocêc Possidonio, recorda quanta vezes a gente foi jantar para discutir problemas políticos, problemas sindicais, problemas éticos, de comportamento das pessoas, da situação do país.
   Você sempre foi uma pessoa pura, que nunca disputou um cargo, uma pessoa sem interesses pessoais. Você, Possidonio, não tem dimensão do quanto você ajudou na minha vida política, no meu comportamento político, no meu desenvolvimento politico. E nesse dia que você comemora sessenta anos de idade, eu sinceramente acho que não existe dinheiro no mundo capaz de comprar o presente que na minha opinião você merecia ganhar. É verdade que a situação política do país, minha trajetória política, a tua trajetória política, fizeram com que a gente passasse muito tempo sem conversar; e cada vez que eu me lembro de você, eu me lembro como nós seres humanos, às vezes perdemos tempo em reuniões, em coisas que quatro companheiros, uma cachaça e uma cerveja, conversando de forma descontraída, resolve mais que uma reunião de dia inteiro, como essas reuniões chatas que participo na prefeitura do PT, nos sindicatos, reuniões eminentementes ideológicas, às vezes sem nenhum sentido prático. Eu acho uma pena que o movimento sindical e até o próprio PT não tenham, talvez por minha culpa, sabido utilizar todo potencial que você tem, a sua capacidade intelectual, aquilo que você representa para uma geração de sindicalistas obstinados que queriam mudar o país. Os agradecimentos não são só meus. Eu acho que são do Rubão, do Nelsão, do próprio Paulo Vidal que você conviveu muito; são do Devanir Ribeiro, do Djalma Bom, do Dr. Maurício, de tanta gente que hoje se transformou  em personalidade...
   Eu só queria lembrar a você, Possidonio, uma coisa muito interessante. No livro “Vamos Empinar Papagaio”, quando você filosofava a seguinte questão: “Na hora de comer, comer. Na hora de descansar, descansar. Na hora de trabalhar, pernas pro ar”.Eu acho que essa é a coisa mais importante para o ser humano. O ser humano precisa aproveitar os momentos deliciosos  que a vida lhe proporciona. O ser humano precisa imaginar que a vida não é carrancuda. Eu acho que você é um pouco isso: um homem despojado, um homem que abriu mão de interesses pessoais, um homem que abriu mão de herança, um homem que doou um terreno para minha campanha em 86, um homem que ajudou financeiramente a nossa luta, ajudou o PT politicamente...
   Eu queria dizer pra você Possidonio uma coisa muito simples de um companheiro, e que vai em meu nome, em nome de Marisa e em nome dos meus filhos. Eu gostaria que você fosse daqueles seres humanos que pudessem encontrar a famosa fonte da juventude que a gente nunca encontra, ou que conseguisse encontrar o elixir da juventude e que pudesse viver cento e cinquenta anos. Eu acho que se nós tivéssemos uma humanidade composta de seres humanos como você, nós não precisaríamos estar procurando construir uma nova sociedade, porque ela já estaria construída. Eu acho que você é uma das pessoas que quem te conheceu se sente gratificado de ter pertencido à tua geração.”


Luiz Inácio Lula da Silva (ex-líder sindical, ex-presidente da República do Brasil)

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    “Enfiei aquele tubo preto no olho e fiquei deslumbrado: miríades triângulos policrômicos misturavam-se com outras figuras geométricas, desenhando botões que, num outro planeta, se abriam em flores. A cada novo giro, novas figuras luziam em meus olhos de criança, como se tudo tivesse o poder mágico de nos fazer enxergar além das aparências.
   É esta imagem que Possidonio grava em minha subjetividade. O Caleidoscópio. Por mais que pretendamos apreendê-lo, ele nos escapa e surpreende. Conheci-o nos corredores agitados do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema, no auge das greves. Fala mansa e atabalhoada de nordestino, jeito de quem não acredita em relógios, o sentimento do mundo – e especialmente da classe operária – reverberando neste advogado que, entre tantas causas, só acredita mesmo em uma: a esperança de ver o trabalhador emancipado e o povo brasileiro feliz.
   Giro. Nova figura. Não é apenas advogado trabalhista que abraça a causa com paixão. É escritor, cuja sensibilidade apreende no tecido rendado das palavras os fatos da vida. Em surpreendente agilidade criativa, poucos meses depois das greves 1979/80 ele nos legou um expressivo romance – Lula e a greve dos peões – cujos personagens são todos reais. Possidonio sabe, como ninguém que, neste país, a vida extrapola a ficção.
   Continuo girando. Sindicalista ele mesmo, ativo militante da União Brasileira de Escritores, onde vai dar-de-si esperando apenas que essa categoria seja mais respeitada num país governado por uma elite politicamente analfabeta. E eticamente criminosa. Não importa que na sede da UBE haja dois ou três gatos pingados, mas lá está Possidonio regando esperanças como quem, em plena seca, colhe mandacaru na certeza de encontrar água.
   Novo giro, e vejo-o com os amigos, desfrutando o prazer da mesa como quem participa de uma liturgia, sem pressa, nem deixar que o apetite de pão suplante a fome da beleza. Papo solto, memórias, casos, histórias... Possidonio é um livro ao vivo. Escreve com a pena e com a fala. Porque seu coração tem estilo.
   Nesta celebração de seus 60 anos, não há dúvida: só resta agradecer a Deus o presente desta vida tão afetuosamente abençoada. E o dom de estar unido e ela por uma amizade marcada por fatos históricos.”

Frei Betto

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   “Olhos sonhadores buscam o infinito, servindo o exército no Guarujá. Caminhadas pelo Parque Pedro II, em São Paulo, o Colégio do Estado; O Largo São Francisco, a Faculdade, a admiração por Cesarino Jr. Saudades da família, dos irmãos. Sei de ouvi-lo contar. E o que não conta, imagina-se, mas respeitando sempre o mistério. Porque há homens que não cabem nos intelectos, somente no coração e permanecem misteriosos. Só se pode testemunhá-los, conviver, amá-los. Cordialmente. Como cordiais são. Antonio Possidonio Sampaio é homem de uma generosidade tão imensa que não se pode contá-la, para não feri-lo. Feita de bonomia, ternura, tolerância, pudor, muito pudor. Pudor de ser, de perceber o outro, de sentir. Pudor de agredir quando, na ira dos justos, retira-se intempestivamente para não ferir ninguém. Não é moderno porque é brasileiro, visceralmente. É ético, íntegro, idôneo. Amigo leal extremoso, consegue ser pai mais extremoso ainda. Possidonio é paixão, no melhor sentido da palavra. De uma boemia que testemunha a liberdade. É homem livre, o que é raro. E nesta liberdade, empunha teimosamente o estandarte da utopia por um mundo melhor, em que todos sejamos iguais, batalhando sempre pela justiça e pela paz, advogado, escrevendo ou, simplesmente, vivendo. O Senhor do Bonfim não me deixa mentir.”

Antonio Carlos Ribeiro Fester

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   “Os primeiros anos de convivência com Antonio Possidonio Sampaio foram marcados por longas e veementes disputas ideológicas. Conhecemo-nos no Centro de Oratória “Rui Barbosa”, na década de 50, na sede da Câmara Brasileira do Livro, na Av. Ipiranga.
   Ele já tinha consciência social aguçada. Citava Hegel e Marx. Eu era fanático pelo liberalismo: minha bíblia era o Estadão. Fascinava-me o verbo eloquente e apaixonado de Lacerda.
   O golpe de 64 deixou o CORB sem sede (Sindicato dos Bancários – Edifício Martinelli), mas contribuiu para consolidar uma amizade que fora nascendo em caminhos superpostos aos das querelas orais.
   Acompanhei de perto toda sua trajetória como escritor. O intelectual amadurecido encontraria na experiência do direito – acumulado no contato de direito com o infortúnio do trabalhador – o lampejo necessário à aventura ou à faina literária, realizada com autenticidade, dignidade e vigor ético. (...)
   A homenagem a Possidonio Sampaio enseja que se exalte a figura de um escritor que nunca deixou de ser fiel ao compromisso com os fracos e oprimidos. Ao contrário, sempre encontrou força e motivação para ampliar o mapa de seu envolvimento, num comovente empenho em favor de mudanças substanciais.
   O advogado, o jornalista, o escritor, o companheiro e o amigo não se diferenciam. Prevalece em todos a harmonia, sob o acorde tríplice da autenticidade, da dignidade e da lealdade.”

Antonio Fernandes Neto

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   “Antonio Possidonio Sampaio pode ser comparado a uma antena ou a um radar, em permanente sintonia com temas políticos, culturais e de política cultural. Fui localizado ou captado por ele em 1980, quando ele me sugeriu que passasse a atuar na UBE, no recém-fundado jornal da entidade e promovendo debates sobre esses assuntos. Desde então se estabeleceu uma espécie de parceria, uma relação muito próxima , de amizade e trabalho conjunto. Essa convivência de dez anos me deu, é claro, oportunidade para avaliar e apreciar suas qualidades humanas e intelectuais. Entre elas, o peso, para ele, da categoria da lealdade, fazendo com que suas iniciativas políticas e culturais, em entidades associativas e outros campos, sempre fossem presididas por um sentido ético.
   Para alguém envolvido nessas questões, Possidonio ainda apresenta outras qualidades, algumas delas raras, como a total falta de sectarismo.
   Ele sempre foi capaz de fazer com que seus pontos de vista e suas posições dialogassem com o outro, com a diferença. Sempre defendeu a pluralidade, fundamento da democracia, sem por isso perder, em momento algum, sua identidade e a especificidade de suas posturas e preocupações.
   Provavelmente é essa dimensão ética que o anima e o impede levando-o a demonstrar tamanha energia e capacidade de trabalho. De tão presente às vezes Possidonio parece múltiplo, dotado da ubiqüidade, capaz de materializar-se em diferentes lugares ao mesmo tempo. Com essa disposição, esse empenho em favor do novo e da mudança, ele foi capaz de dirigir entidades, atuar em sindicatos, desincumbir-se profissionalmente, e acrescentar à sua produção literária vários títulos de livros, além de inúmeros artigos, para os quais escolheu, na maior parte das vezes, o jornal que ajudou a fundar e a desenvolver, O Escritor, como veículo.
Nesses dez anos de atuação na UBE, fazendo um balanço desse tempo, vejo que aquilo que sobrou de mais importante são as boas amizades feitas nesse período. O fato de ter conhecido Antonio Possidonio Sampaio exemplifica bem o quanto isso foi positivo e gratificante.

Claudio Willer